10 June 2010

O Devir sem Abrigo: "Porque' uma cama e não o asfalto?"

Tokyo e' a maior metrópole do mundo, 35 milhões de habitantes. Para cada mil habitantes, há um sem abrigo. E eu vi um para cada mil destes 35000. Cheguei a Tokyo ja meia noite e vi as altas torres iluminadas. As passadeiras e os sinais luminosos dos assistentes de tráfego que me faziam vénias quando passava. Na porta da torre estão a sair do jantar ou do trabalho uns 5 jovens engravatados. Uns metros depois há cartões que cobrem um corpo que dorme no passeio de asfalto imaculado. A' frente a mais antiga loja da Apple fora dos USA. Depois, corpos embrulhados em cartão. Não há telefones e os hotéis são todos de 3 ou 4 estrelas (200eur por noite).

Eram já 3 da manha e não conseguia parar de vaguear pelas ruas de Tokyo tamanha era a inspiração que
aquele lugar novo me passava (este e' o momento mais alto desta viagem de meses). Continuei a vaguear/divagar! Ao passar por ali, vi uma guitarra que tinha esquecido numa mão de corpo. Tirei uma foto. Era eu reflectido numa montra que fazia espelho e pensei, claro, "quem vai ali?" e a grande questão desta viagem "porque teimo em ser eu?". Porque' eu este e não outro? Porque' azul e não amarelo? Porque' pensar isto e não aquilo? Porque' uma cama e não o asfalto?


A resposta a esta ultima questão poderá parecer fácil ao leitor arrotinado mas aquele corpo reflectido aprendeu ali a impossibilidade da solidão. Só não durmo no asfalto porque não estou sozinho, trago-te sempre comigo. E se sempre teimo em ser eu, e' so' por isso, porque estou contigo. E encontro aqui a grande barreira da minha "normalidade". O grande bastião da minha liberdade e' uma corrente. Eu, o mais isolado dos viajantes, o mais só e livre dos pássaros, nunca estou realmente sozinho nem livre. Eu estou sempre comigo, e estar comigo e' estar contigo, e' estar com o Outro. "Quem sou eu?" vira "eu sou o Outro".

E nesse sentido, eu sou um dialogo. Estou sempre com alguém, estou sempre contigo leitor. Bem cá dentro eu sou sempre o que tu vês em mim. E ali, naquele espelho de montra de Tokyo, não fui eu que me vi, foste tu: o Outro olhou para mim ali, eu estava só no reflectido e naquele momento não era ninguém. No espelho havia só um corpo. E esse corpo, eu, era ninguém. E foi preciso voltar do espelho para voltar a ser eu. Parar a viagem em direcção ao Outro e deixar que me olhassem. Foram precisos 110eur de eu para pagar aquele quarto de hotel onde o corpo reflectido dormiu sozinho, e eu contigo, leitor. A cama foi o preço da consciência.

E' aqui que Sa' Carneiro e' mais útil que Pessoa para nos nos explicar. Ah, se Sa'
Carneiro fosse so' mais um heterónimo de Pessoa! E' esta também a razão da importância da palavra esquizofrenia na explicação do Eu: etimologicamente como cisao da mente mas também clinicamente como ideacao persecutoria, tudo regado em largas doses de alucinacoes mais ou menos comuns (ou, diriam outros, mais ou menos reais).

(neste post o "leitor" faz o papel de plateia, qualquer plateia. Vem de um livro muito interessante que li há muitos anos: "o instinto de plateia" onde se analisam as plateias interiores que todos temos: "Com quem falas quando falas sozinho ou pensas? Quem são os teus interlocutores internos?")

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