20 June 2010

Acreditar na Noite

Um dia e' uma vida; a entrada na noite, a morte. Tudo se fez claro naquele momento escuro em que tentei o suicídio. E por sorte,  num instante, entendi que não o devia fazer. E sempre aquela naturalidade com que todos aceitamos a morte diariamente.

Estava deitado numa cama de quarto escuro e corpo quase nu. Fechei os olhos e deixei de pensar no meu corpo, no onde ele estava e aos poucos fui perdendo consciência e entrando naquele espaço de ventos coloridos em que passam filmes mudos. Acreditei que as técnicas que aplicava resultavam ao ponto de quase morrer. O filme que passava chamava-se "a ascensão". Mas numa cena menos forte, ouvi o ruído de gente que festejava e entrei no vórtice de regresso. Há primeiro o ouvir o ruído, depois o entender o ruído, depois o entender que se entendeu o ruído, como quem se vê ao espelho, e depois o sentir e entender o corpo pousado na cama e o frio da janela de onde vem o ruído de gente que festeja. Salvaram-me a vida em festa!

Depois tentei outra vez adormecer e concentrei-me no peso que sentia nas sobrancelhas. O sono caia e já não senti o corpo. A zona dos ventos mudos apareceu mas houve uma ansiedade que me fez mover o olho. Havia ainda vida em mim. E porque queria eu dormir? Porque' o suicídio? Insónia e' vida! Levanto-me e vejo que me resta pouco tempo agora, talvez uma hora de vida. Todos dormem e eu devo dormir, a morte chegara moralmente portanto. O nervosismo da-me insónia, tempo de vida.

Acreditar na noite e' como acreditar na reincarnacao. E' acreditar num despertar. Porque acredito que ontem me deitei e adormeci? Porque acredito eu na minha memoria? Porque acredito eu que sou eu quem viveu meu passado? Acreditar na memoria e' acreditar no tempo linear em que ela se constroi. (essa e' a tua grande doenca leitor! acreditares que ontem estiveste aqui e adormeceste? que provas tens?) E' preciso deixar de acreditar na memoria para entender o tempo. E' preciso deixar de acreditar que adormecemos ontem. E' talvez preciso deixar de acreditar, pelo menos, que fomos nos, os mesmos deste agora/aqui, que adormecemos ontem.

E por ai chegamos a' noite da morte. Adormecer e' morrer. E portanto, esquecer o presente imediato, estes últimos 5 minutos, e' morrer! Deixar que a cena mude, no filme, e' morrer. Como se fossemos o personagem que só vive na própria cena. Depois da cena, a morte. Ao adormecer morremos ali e, no dia seguinte, há apenas reincarnacao, já num outro tempo, de alguma coisa repetida de nos, mas outro nos, outro eu. Tentar adormecer em noite de insónia e' uma tentativa de suicídio. A morte deve ser natural!


Quatro perguntas para acreditar na noite


porque acreditas tu
que es tu
quem viveu teu passado?

2 comments:

O Coxo said...

Eu costumava ter muitas insónias. De repente foram-se, sem se despedirem. Confesso que sinto falta desse inconformismo do corpo.
Hoje em dia entrego-me ao sono com um desapego à vida que chega a ser desconcertante. :-) abraço,

Torpedo said...

MMMmmm... Food for thoughts!... Thanks! :)